Gestão e Logística 4.0: uma entrevista com Paulo Roberto Bertaglia

Bertaglia fala com a Delage sobre o futuro do Supply Chain e como a logística tem se adequado à pandemia

 

Estamos em constante evolução e no mundo dos negócios não é diferente. A pandemia do coronavírus trouxe novos desafios em toda a cadeia de suprimentos. Diante das interrupções, do fechamento de lojas físicas e das mudanças nos hábitos de consumo, as empresas se viram pressionadas a pensar em alternativas que suprissem as demandas, sem perder a qualidade do serviço. Foram necessários uma readequação dos processos e investimento em tecnologia em todas as áreas, principalmente na logística, que é a peça fundamental na aproximação das marcas com seus os clientes.  

 

Paulo BertagliaPara Paulo Bertaglia, autor renomado na área de logística, “esse é o momento para aprender, desaprender, reaprender e ensinar”. Paulo tem um vasto conhecimento e experiência na área de Supply Chain Management, Tecnologia da Informação, Terceirização e vendas de serviços. Formado em Administração de Empresas e Análise de Sistemas, é autor do best seller “Logística e Gerenciamento da Cadeia de Abastecimento” e da obra “Serviço a Cliente e Estratégias de Logística Global”, além de trabalhar também como professor de pós-graduação em Logística, Gestão Estratégica de Negócios e Tecnologia da Informação. .

 

Com 30 anos de atuação na área, Paulo trabalhou em grandes empresas, como IBM, Unilever, Hewlett-Packard, Oracle e EDS. Atualmente é Sócio-Diretor da BERTHASinstituição direcionada à Gestão e treinamento empresarial com foco em planejamento estratégico e operacional, Compras e Distribuição, além de modelagem e otimização de processos de negócios e desenho e operações do Supply Chain e Vendas. 

 

Recentemente, Bruno Honório, nosso Director of Sales & Projetcs – Latin America, participou do programa do YouTube “Prosa com Bertaglia”, com o tema “WMS: em busca da produtividade logística” (assista aqui). Hoje, Paulo é o nosso convidado nesta entrevista especial onde abordamos a evolução da logística, as novas estratégias e a importância do investimento em inovações para se manter competitivo. Confira a seguir:

 

Delage: Quando e como você descobriu a sua paixão pela Logística? O que mais te encanta na área?  

 

Bertaglia: Iniciei minha vida profissional ainda na adolescência. Sempre gostei de trens, caminhões, navios e aviões e, aos 15 anos, era responsável pela separação, carga e entrega de mercadorias de um pequeno varejo familiar. O termo “logística” era pouco conhecido na época. Ingressei na IBM e ali aprendi mais sobre estocagem e movimentação física em toda a sua amplitude. Mas foi na Unilever que a paixão tomou corpo e se expandiu para “Supply Chain”, envolvendo áreas de planejamento, compras, manufatura e distribuição.  

 

Trabalhei em todas estas áreas durante minha carreira, além de vendas e tecnologia da informação, começando nos níveis técnicos e alcançando importantes posições de liderança. O encanto da área está em sua complexidade, na possibilidade de gerar estratégias diferenciadas, de experimentar novas soluções, de lidar com pessoas com frequência, de propor novos modelos de negócios.  Não existe dia igual nesta atividade. E as variáveis são muitas, o que nos torna eternos aprendizes.

 

 

Delage: O que te motivou a escrever a obra “Logística e Gerenciamento da Cadeia de Abastecimento”?

 

Bertaglia: A sede pelo conhecimento foi o principal fator e a possibilidade de compartilhá-lo maior ainda. Desde a juventude, meu propósito e missão sempre foi compartilhar o conhecimento, uma vez que comecei a lecionar muito cedo. Quanto ao projeto do livro, eu estava trabalhando para a Unilever e tinha uma posição executiva internacional. Quando buscava literatura sobre “Supply Chain”, não encontrava nada no Brasil. E o tema estava começando a “esquentar” na Europa e nos EUA.  

 

Cheguei a ter contatos com importantes acadêmicos e profissionais globais na época sobre a perspectiva de disseminar o conhecimento através de literatura, entre eles estavam Hau Lee, Bowersox, Tompkins, Gattorna, Ballou, os quais sempre considerei grandes conhecedores e pesquisadores do tema. Todos diretamente ou indiretamente exerceram uma grande influência na elaboração de meu livro, afora grandes profissionais da própria Unilever e de outras organizações de vários segmentos do mercado nacional e internacional que muito me apoiaram na empreitada.  

 

Essa atividade me possibilitou criar uma enorme rede de relacionamentos ao longo da minha carreira, inclusive no exterior. Lecionava como segunda carreira e estava presente em muitos eventos nacionais e internacionais ministrando cursos e palestras. Quando o livro foi lançado eu estava na Hewlett Packard, uma gigante cujo investimento no conhecimento em “Supply Chain” era formidável. Apesar de haver escrito outros livros, o “Logística e Gerenciamento da Cadeia de Abastecimento” tem sido muito marcante para mim pelo propósito de beneficiar muitas pessoas.

 

 

Delage: A primeira edição do livro foi elaborada há mais de 20 anos e a obra vem sendo atualizada a cada edição, trazendo novos conceitos, discussões e casos de sucesso. Desse modo, você diria que a essência da gestão e execução logística se modificou muito de lá pra cá? O que ainda permanece como relevante e o que foi mudado/acrescentado?

 

Bertaglia: Levei quatro anos para escrever o livro. Foram realizadas muitas pesquisas e muitas entrevistas com especialistas nacionais e internacionais, principalmente os casos de negócios. Quando a Editora Saraiva (hoje Somos Educação) chegou até mim, a obra estava pronta. Eles apostaram no sucesso do livro. O mundo dos negócios está em constante transformação, e a obra tem que se adequar a essa situação ou fica ultrapassada. É necessário ter esse cuidado, pois o livro é referência bibliográfica na maioria das universidades brasileiras. É uma questão de responsabilidade e respeito à educação trazer o que há de novo. E para mim uma preocupação constante.  

 

Embora a essência da Logística seja armazenar e transportar, novos modelos de negócios surgiram e afetaram substancialmente a forma como “supply chain” atua tanto no nível estratégico quanto no operacional. A tecnologia tem uma influência importante. As pessoas precisam estar mais bem preparadas. O comportamento dos clientes e consumidores se alterou. A experiência do cliente leva a patamares diferenciados de exigência. Agilidade, transparência, rastreabilidade, sustentabilidade são fatores fundamentais. O uso adequado dos dados e visibilidade em tempo real são elementos de vantagem competitiva não só para o comércio eletrônico. Hoje se fala em transformação digital, indústria 4.0, última milha, conectividade, leis de proteção aos dados, para citar algumas iniciativas. A atualização constante é mandatória. Mesmo aqueles modais de transporte mais conservadores sofrem impactos. É momento de manter um clichê que muito utilizo: aprender, desaprender, reaprender e ensinar. É a chave para nos mover.  

 

Delage: A pandemia foi um grande divisor de águas no mundo corporativo. Especialistas estimam que a digitalização foi acelerada em, pelo menos, 5 anos. Como você avalia os negócios que ainda hoje estão à margem desse processo?

 

Bertaglia: Concordo com a afirmação. As mudanças já vinham ocorrendo e a pandemia as acelerou. O mundo globalizado leva a fatores positivos e aos negativos. Os efeitos da pandemia devem ser avaliados como elementos de aprendizado. Muitas empresas apostaram no momento e fizeram seus investimentos para se posicionarem no mercado. Isso é visível em algumas grandes e competentes empresas do varejo nacional e internacional, as quais acabaram influenciando muitos operadores logísticos e empresas de tecnologia, por exemplo, a se adaptarem e encontrarem novas soluções para o novo momento.  

 

As oportunidades acabaram surgindo. As startups que o digam. Hoje temos as Logtechs, Fintechs, Martechs que geram soluções importantes para todo tamanho de empresa. Aquelas organizações mais conservadoras, que não se aparelharem e não acreditarem nessas mudanças, podem não sobreviver. A concorrência que antigamente era mais visível, pois o competidor era normalmente uma grande empresa que produzia produtos similares, já se torna invisível às análises menos criteriosas. A situação mudou! Temos os unicórnios, as exponenciais e aqueles que criam os seus oceanos azuis. Há que se prestar muita atenção nesses detalhes.  

 

Delage: Foi também com a pandemia que os gestores de logística se viram diante de uma situação jamais imaginada e tiveram que se reinventar e readequar seus processos. Na sua visão, quais foram as transformações e aprendizados mais relevantes? 

 

Bertaglia: Acredito que as empresas aprenderam a respeitar o mercado e os consumidores. Entenderam que reputação e imagem são fundamentais, que o bom uso da tecnologia é essencial e que a busca por um planeta sustentável é fator primordial. Todos esses fatores são relevantes e geram impactos na cadeia de valor, na relação com fornecedores e na troca de informações. O conceito da negociação ganha-ganha, para empresas bem sucedidas, atinge um grau de maturidade superior ao que existia no passado.  Falamos em ecossistema, em responsabilidade social e ambiental. A integração da cadeia passa ter um valor importante e as exigências também. Tratar a pegada de carbono é pauta de todas as empresas, cuidar da segurança dos dados também. Se o consumidor demanda produtos de origem confiável, toda a cadeia é afetada. É uma rede, um ciclo virtuoso com uma visão holística extraordinária. Do fornecedor do fornecedor ao cliente do cliente!

 

 

Delage: Em relação à ascensão do comércio eletrônico e do omnichannel, percebemos uma necessidade cada vez maior das empresas em colocarem o cliente no centro do negócio – do contrário, podem perder espaço no mercado. Como adequar a logística, em especial, considerando toda a rede de distribuição (CDs, lojas, dark stores, MFCs), para que seja oferecido um serviço de alto padrão, personalizado e ágil? 

 

Bertaglia: Há muito se fala em colocar o cliente ou consumidor no centro, não é novo! Contudo, algumas empresas têm prestado muito mais atenção a esse conceito que outras, não necessariamente apenas o varejo. Muitos afirmam que a logística, no contexto físico de mover e armazenar, é uma commodity. Porém, os modelos, os processos, as tecnologias, as estratégias e as pessoas, sim, as pessoas é que farão a diferença e mudarão o status de commodity. É condição importante entender o que está acontecendo e mover-se com habilidade e agilidade. Entregas no mesmo dia já são realidade, opções de coleta também o são. A mobilidade urbana passa a ser outro elemento importante na jornada do consumidor. Se a empresa tem dificuldade de chegar a ele, talvez existam outros caminhos que não necessariamente obrigue o comprador a ir até as lojas. A Amazon implantou milhares de “lockers” em mais de 900 cidades nos EUA. É uma estratégia! É válida para todas as empresas? Talvez não. Por isso é importante avaliar estrategicamente os passos a serem dados.  

 

Outras organizações usam minis centros de distribuição nas grandes cidades para acelerar suas entregas, usando modos diferenciados e mais rápidos de transporte, como a motocicleta. Adicionalmente conceitos de terceirizações mais inteligentes começam a tomar corpo movendo do 3PL para 4PL, 5PL e até já se fala em 6PL com o uso de inteligência artificial para monitorar dados. Vale para todos? Seguramente não! Mas cada um deve visitar suas necessidades e avaliar onde investir. Isso é estratégico. 

 

 

Delage: Você tem mencionado bastante sobre a importância do planejamento estratégico e, sobretudo, do esforço em aplicar efetivamente o que foi delineado. Como, então, as empresas podem concretizar seus planos, ainda que sejam ousados e pioneiros? Vale a pena arriscar para se destacar no mercado? 

 

Bertaglia: Sempre acreditei no planejamento estratégico como um elemento que estabelece um norte para a organização. Não pode ser engessadoPrecisa se adaptar às condições de volatilidade, alinhar objetivos com a estratégia é fundamental. Porém, revisar os passos a serem dados à luz das incertezas é primordial. Conceitos como organizações ambidestras precisam ser compreendidos. A ambidestria leva ao pensamento de explorar o presente buscando eficiência e produtividade para a receita sustentável, enquanto simultaneamente explora o futuro com novas soluções, produtos, serviços e modelos de negócios e isso passa novamente por pessoas e pela capacidade de se reinventar e investir. Nem todos terão condições e fôlego para tanto. Arriscar faz parte do negócio.  

 

Delage: Na última edição do seu livro, a Logística 4.0 foi bem explorada. Sobre esse tema, como você avalia o cenário atual das empresas brasileiras se comparado ao de outros países? O que precisa mudar? 

 

Bertaglia: A indústria 4.0 veio para ficarTenha este nome ou outro qualquer. O importante é entender que a globalização é fator essencial no elemento competitividade, as nações competem entre si. Michael Porter escreveu sobre isso há mais de 30 anos. A conjuntura econômica e a infraestrutura externa dos paísesassim como a habilidade de negociar internacionalmente, podem alavancar o progresso do país, fortalecendo as instituições e gerando mais empregos. Porém, esse é um processo que demanda visão, estratégia e execução, sem falar das habilidades de negociação nos campos da política e da economia. Muitos países redigiram seus planos digitais” para os próximos anos como os EUA, China, Itália, Alemanha, Inglaterra, México, Índia entre outros. O Brasil, embora esteja discutindo o tema, ainda patina. A pandemia desacelerou um pouco essa prioridade, o que é perfeitamente entendível.  Avanços em infraestrutura, balanceamento dos modais de transporte, adequação tecnológica, revisão tributária são elementos que devem ser priorizados. A educação é outro importante instrumento para que haja um avanço efetivo.

 

 

Delage: Na sua visão, quais são as principais tendências da Logística para os próximos anos? 

 

Bertaglia: São muitas as tendências nos diferentes segmentos. Vou citar algumasExistem elementos que são fundamentais e impactam a maneira a como a cadeia vai se comportar, os avanços tecnológicos e novos modelos de negócios seguramente influenciarão a forma de fazer negócios na logística. A tecnologia para a gestão de transportes e de centros de distribuição, as torres de controle, o uso de rádio frequência, gestão e conformidade de dadosassim como a execução e compartilhamento de informação em tempo real, irão se consolidar mais e mais. Fatores como transparência, rastreabilidade, maior segurança das informações são outros elementos importantes. Omnichannel ou “multicanalidade” tem sugerido novos modelos logísticos. O uso de operadores logísticos de forma mais inteligente é uma tendência de mercado, uma vez que já possuímos operadores muito bem capacitados. A sustentabilidade já é parte da agenda das empresas com vistas à proteção do meio ambiente e do planeta, reduzindo a emissão do carbono, e a logística é um dos grandes vilões na pegada do carbono, principalmente o transporte rodoviário. Energia limpa e renovável passa ser prioridade, frotas com veículos elétricos serão comuns, estudos e alternativas voltados para melhorar a mobilidade urbana terão prioridade. Sem contar as entregas mais ágeis e no mesmo dia. As inovações estão aí, e estão acontecendo. Novas soluções surgem com grande frequência. 

 

 

Delage: Quais conselhos você daria para um jovem recém-formado em Logística e para um gestor que já atua no mercado há bastante tempo? O que um pode aprender com o outro? 

 

Bertaglia: Estamos na era do conhecimento, da atualização e aprendizado contínuo. Aprender e ensinar não é mais uma prerrogativa de que o mais velho ensina o mais novo. Nada disso! Ambos se aprendem e se ensinam. A diversidade e a inclusão fazem parte das empresas. Aprendemos com pessoas que possuem diferentes visões, diferentes vivências, diferentes origens e status sociais. Não se trata apenas de sexo, raça ou cor. É muito mais do que isso, são experiências! As experiências agregam diferentes formas de encontrar soluções. Olhar as coisas e os problemas com perspectivas diferentes. Isso vale para o experiente como para quem está começando.  

 

Faço mentorias para executivos, estudantes e professores e fico extremante feliz ao ver as habilidades dos jovens e a vontade dos mais velhos de estarem inseridos no contexto das comunidades e se sentirem úteis de alguma maneira. Seja pelo trabalho, pela inclinação em ajudar, em apoiar, em ensinar, em aprender, em estar acessível. São inspirações diárias que trazem enorme satisfação. Caso queiram me contatar, acesse pelo LinkedIn. 

 

* A equipe Delage agradece ao Paulo por nos conceder esta entrevista e por dividir conosco sua experiência e conhecimento.